terça-feira, 14 de abril de 2009

A Terceira Páscoa.

Todos afluíram à comunidade onde o Missionário iria celebrar a Páscoa. Trinta e tal baptismos, setenta e muitos casamentos e a festa que é por si só uma eucaristia africana. Uma pobreza apenas aparente. Nada nem ninguém poderiam faltar.


Nem eles, todos.

Nem as noivas, com vestidos feitos de toalhas de mesa e ténis de plástico.

Nem o Missionário, com a sua extraordinária alba africana.

Nem a Fé, expressa em lágrimas e sorrisos.

Nem as danças, para Ele.

Nem os vizinhos muçulmanos, curiosos.

Nem as outras mulheres, curiosas.

Nem as bicicletas, com as galinhas.

Nem o Sol.

Nem a cor.

Nem eu, pela terceira Páscoa desterrado, pela terceira Páscoa deslumbrado.


sábado, 11 de abril de 2009

terça-feira, 7 de abril de 2009

A Diferença do Braço.

Hoje pela manhãzinha participei na abertura oficial do ano lectivo numa escolinha (escola pré-primária) que a Helpo vai apoiar em breve. A escolinha foi aberta por uma ONG que estava por aqui e fechou assim que ela saiu de Moçambique. Aqui é assim. Agora foi reaberta, por acção da Igreja e do Missionário, porque fica no território da sua paróquia. Fui buscá-lo ao Marrere, onde tomei cafezinho fresco e ainda discuti o calor, o frio e a malária, e seguimos pela picada até ao bairro de Nacahe.
Sentados em círculo, por baixo da maior árvore das redondezas, nós, os papás, as mamãs, o ancião da comunidade e, claro está, no centro do círculo, as crianças, em estilo de cerimónia oficial.
A tristeza dos líderes locais pelas ausências do responsável local do Ministério da Educação e do correspondente ao nosso Presidente de Junta era patente. O director da escolinha conduzia a cerimónia, orientando-se criteriosamente pelo papelinho que continha o programa. Em cada momento, estavam previstas intervenções dos dois ausentes. Ele lia, com um misto de medo e vergonha: "ágôra o Senhor Chefi do Posto Adiministrativo dêvêria dizer algumas pálávrás, más... não marcô prêsença...". Repetiu esta frase uma meia dúzia de vezes, sempre a encolher os ombros, sempre que o programa previa.
Havia uma criança subnutrida. Nota-se imediatamente. São crianças diferentes e não é só na magreza anormal.
Visitámos as instalações. Observámos os monitores a darem biscoitos e refrescos às crianças com grande formalismo e protocolo, porque afinal, estavam lá os mucunhas (brancos, mulatos ou estrangeiros), mesmo apesar de o poder político ter-se borrifado completamente para aquela pequena comunidade suburbana de Nampula. Afinal de contas, o convite não incluía almoço. Compreende-se. Só mesmo um mucunha idiota que aprecia especialmente levantar-se às seis da manhã para aceitar um convite para uma cerimónia chata que, ainda por cima, não inclui almoço.
As horas passaram e foram desaguar num almoço com um conjunto de portugueses, sem que tal estivesse previsto. Em casa de um português, há muitos anos em Moçambique, pessoa bem colocada que conseguiu construir a sua casinha de campo, com direito a cozinha rústica no exterior, com forno a lenha, bar para os amigos e uma longa mesa por baixo do alpendre.
Comeu-se muito bem. Bebeu-se também muito bem. E conversou-se melhor. O almoço terminou às dezassete horas, após uma divertida partida de loto.
Com tudo isto, não deixei de pensar naquilo que um director de uma escola me disse ontem à noite, ao telefone.
Organizei uma reunião com os animadores da Helpo nas diferentes escolas e escolinhas onde a Helpo intervém - são professores das escolas, que nos ajudam localmente nas nossas tarefas. Aproxima-se uma das duas alturas anuais de envio de carta dos meninos aos padrinhos portugueses e, considerando que são duas mil e tal crianças apadrinhadas, há que preparar com antecedência esse envio.
Há uma comunidade que não tem animador há uns dois meses. Nessas situações, para efeitos de relacionamento institucional com a Helpo, quem responde é o director da escola. Ora, os animadores recebem uma pequena compensação pela ajuda que dão à organização. Se eles não ajudam, se não trabalham ou se, simplesmente, não existem, não há lugar ao pagamento dessa compensação.
Aqui, o mucunha é um multibanco, dizia hoje o nosso anfitrião ao almoço. Nada mais que isso. E tem que dar, senão não serve de nada e "está estragado". Pois. É mesmo assim. Acontece que a Helpo não é um multibanco. A Helpo ajuda com materiais, não com dinheiro. E este Senhor Director tem uma enorme dificuldade em entender isto. Entendeu, enquanto havia animador, que pelo mero facto de ser director da escola e o animador ser um professor da mesma, deveria ter uma percentagem daquilo que o animador recebia da Helpo, fazendo pressões e ameaçando o animador para que este o informasse sempre que recebia e para que lhe desse uma parte. Não havendo animador - ó maravilha! - o dinheiro que os idiotas dos mucunhas dão deveria ser para ele.
Ontem, à frente de doze ou treze animadores, disse-lhe olhos nos olhos que não haveria pagamento para a escola dele, primeiro porque não havia animador, segundo porque não tinha sido feita qualquer intervenção naquela comunidade no mês de Março. Ficou boquiaberto. Ficou tão siderado que balbuciou uma desculpa qualquer e saiu imediatamente. Esperou cerca de duas horas (tempo que eu fiz a reunião durar até chegar à parte dos pagamentos, para obrigá-los a trabalhar e a ficar na reunião) sem pronunciar uma palavra. Estava, autenticamente, à espera de receber, nada mais. Quando chegou à parte que o tinha trazido à reunião, correu-lhe mal. Não recebeu. À noite telefonou-me, dizendo num tom arrogante que considerava isto uma injustiça, porque outras comunidades tinham recebido sem fazer nada. Respondi-lhe que não tenho satisfações a dar-lhe, que pago a quem entendo que devo pagar. E que ele devia ter vergonha, porque em vez de pedir ajudas específicas para as crianças ou para a escola, só sabia pedir dinheiro para ele. O mesmo que se vangloriava de ter acalmado a população local que andava convencida que os brancos andam a roubar crianças às populações do mato, quando o que provavelmente fez foi apenas dizer que o tinha feito. E que não metia medo a ninguém.
A questão é que aqui ninguém vem dar educação a ninguém. Não vale a pena tentar educar quem não quer ser educado. Quem mata colegas de trabalho porque eles andam mais no carro do patrão. Quem não quer saber de limpar e dar de comer ao filho de ano e meio que pesa cinco quilos. Quem não vai a uma cerimónia que deveria ir porque não há almoço. Quem só tapa os buracos da estrada porque por ali passa todos os dias a esposa de um alto funcionário do Estado a caminho das aulas nocturnas na universidade. Quem mete ao bolso o dinheiro que foi dado para comprar traves de madeira para sustentar um telhado de uma sala de escola e vai ao mato cortar dois pés de eucalipto para fazer de trave. Quem rouba peças de um poço acabado de estrear na escola e que aliviava as vidas de centenas de pessoas. Quem obriga um homem a passar vinte e seis horas à porta da minha casa, supostamente a fazer protecção à mesma e que só o substitui porque o branco vai à sede da empresa de segurança perguntar se vão ficar à espera que o desgraçado caia para o lado, porque enquanto foi o desgraçado a pedir para ser rendido, tal não aconteceu. Quem ameaça com a manipulação e a fúria de uma população inteira só porque não recebeu o subsídio que entende ser seu por direito divino.
O meu anfitrião de hoje explicava tudo isto de forma colorida, batendo no seu antebraço esquerdo com força. "A diferença está aqui". Disse ainda outras coisas que me escuso a reproduzir. Porque não gostei e porque me chocaram.
Mas a verdade é que seja qual for a razão, África é o que é e não acredito que dentro de cem anos seja diferente. Se é da pele, se é do calor ou se é da colonização, não sei. O que sei é que o Missionário tinha razão, hoje de manhã, enquanto andávamos aos solavancos na picada: Deus é preto. E é preto porque só sendo preto é que poderia favorecer esta terra com tantas riquezas e fartura, que leva esta gente a fiar-se na velha máxima "Deus dá" (por isso não têm que se preocupar nem esforçar muito porque aparece sempre). Na Europa teve sempre de se trabalhar muito para ter aquilo que aqui nasce espontaneamente.
E amanhã é outro dia.

sábado, 4 de abril de 2009

Domingo Nove.

Tete fica em Moçambique. E isto é mesmo verdade.

Comecei a suspeitar que algo de estranho se passava quando, na distribuição de material que até partilhei contigo numa foto ali em baixo (a do carro ao pé da árvore), chamei por uma criança de seu nome Sábado Trinta.

Sábado Trinta?


Pois é. Eu merecia ser Domingo Nove.

Já se sabe que, quando um nome termina em "es", isso significa "ser filho de". Por exemplo, Mendes é filho de Mendo. Nunes, de Nuno. Rodrigues, de Rodrigo, Gonçalves de Gonçalo, e por aí fora. Isso é tudo muito simples. Mas agora, Majuma é um fenómeno à parte. É talvez o único nome da língua portuguesa que denuncia que, se é Majuma, tem uma irmã e que essa irmã tem de ser mais velha. E isto não sou eu que, vítima de um tédio tal, já papei todos os Dr. House e Sherlock Holmes que já foram feitos, decidi meter-me agora a detective. É apenas porque Majuma é mais uma, num belo sotaque de Viseu adaptado às Áfricas outrora portuguesas...

E como este, muitos outros fenómenos, mas que só te direi se pedires muito...

quinta-feira, 2 de abril de 2009

A Famosa Galinha-Brava.


De manhã bateu um peixe à porta de casa para comer assado com batatinhas ao almoço feito pelo zeferino como ele faz sempre pois só sabe fazer daquela única maneira que um dia qualquer alguém ensinou a ele e a todos os meninos homens que assolam a casa todos os dias para vender peixe e verdes e carne como abutres de ver o homem do cesto de cinquenta quilos à cabeça e água fétida a descer-lhe pelo corpo já de si suado e sem banho e os olhos riscados de vermelho e de morte e de exaustão e de pobreza e de ignorância e de tudo e tive pena do encharcado e abri o peixe na guelra que a mãe ensinou e vi cor-de-rosa. E tirei um quilo da cabeça do encharcado ignorante pobre exausto morto sujo suado de quem tive pena.

Tudo se perde e tudo se tira.

Existe um supermercado com ar disso em Nampula. Chamam-lhe Shoprite, que deve ser lido como se lê Sprite, ou seja, com o “i” aberto, para que pareça que se está a dizer “Shop Right”. É um supermercado, que faz lembrar o Pingo Doce da minha vida, o que fica na Avenida da República, em Gaia, aquela que aparecia nas notícias de trânsito antes de haver mais estradas, variantes e circulares do que há pessoas. Em Gaia. Antes era Pão de Açúcar. Eu preferia Pão de Açúcar, com o elefante. E os sacos plásticos eram laranja.


O Shoprite tem de tudo um pouco, incluíndo a invejável aura de local muito perigoso. Não lá dentro. Lá dentro, o perigo está na prateleira da carne, normalmente de cores variadas e cheiros intensos. É cá fora. Não para mim, ou para ti, mas para o carro. Se fores ao Shoprite, think rite as well, don’t take your car. Porque a menos que já conheças a malandragem que por ali passa os dias ou que dês sempre a moedinha de dez meticais, vai faltar-te alguma coisa. Um espelho. Um pisca. Um dia destes, uma jante. Ah e não têm fiambre. Mas cá fora, a batata é mais barata. Na candonga, que aqui é pomposamente designada mercado informal. Convenhamos, seria um passo civilizacional demasiado largo chamar-lhe mercado negro. Quando isso acontecer, as ONGs deixarão de existir.

Não me importam muito as convenções nem as tradições nem as conveniências nem as formatações nem as normas nem as vergonhas nem aquilo que é esperado. Importam-me mais as memórias e as sinceridades, as verdades e as saudades, as ansiedades e as memórias que tenho de tempos e de momentos que recordo tão bem e que são tão reais que ainda consigo sentir e cheirar e ver que tenho a certeza que esses tempos não são tempos, são realidades que resistem e que existem agora algures num espaço que não sei onde fica, mas que sei que pelo menos da minha memória não fogem. Na minha memória estão seguros. Estão comigo.

Nada fica e nada regressa.

É como os amigos que nos morrem. Ou que não morrendo, deixámos para sempre. Já falei disto antes. É como eles. Que se vão, que nunca mais veremos mas que no fundo ficam para sempre no momento em que foram. Nas nossas cabeças. Nas nossas memórias. Eles continuam a viver, apenas com o detalhe de nunca envelhecerem. Eles ficam lá. Eu tenho, não tive, amigos que o foram e que o são e que só vão morrer quando eu morrer. Somente muito mais novos que eu. Eu também vou morrer, com muitas idades, em muitas memórias, em muitos locais, muitas vezes. E em ti, também.

Mas choramos sempre, não é? E às vezes choramos tanto…

Só. No meu caminho. Estreito, entre vozes e risos. Vozes que são a minha companhia, risos que me mostram os perigos. Como fantasmas.

quarta-feira, 1 de abril de 2009