quinta-feira, 28 de maio de 2009

Efeito Camaleão.


Um dia destes chamam-me mano e pedem-me o BI em vez do passaporte.

Wally e as Estrelas.

quarta-feira, 20 de maio de 2009

O Belo e o Real.


Quando se reflecte sobre o fim e o fundamento da acção no terreno de uma organização humanitária, há várias ideias que surgem e que, aparentemente, assumem importância semelhante. Porque as solicitações são muitas e todas parecem demasiado urgentes. Sejam a favor de um indivíduo ou de vários, as intervenções em geral são entendidas como benéficas e úteis, sobretudo aos olhos do observador externo.

São conceitos complexos. Fim e fundamento implicam juízos morais, que habitualmente variam, consoante a pessoa e consoante o contexto, sem que isso afecte a convicção pessoal da validade de cada uma. O que traz naturalmente alguma dificuldade no encontro de consensos.

Há porém, algumas dessas ideias que, pela característica intrínseca de elementaridade e pela abrangência universal dos seus efeitos, tornam-se um pouco “mais importantes” para a maioria dos juízos e das convicções.

Moçambique é um país que, apesar da muita chuva que cai na estação húmida, sofre com a falta de água. E isto acontece porque não existem infraestruturas que garantam não só o armazenamento da água mas também, e sobretudo, a distribuição em rede. O que acarreta uma realidade bem conhecida no interior de Portugal até há poucas dezenas de anos, que é a necessidade de percorrer muitos quilómetros para ter alguma água em casa. Este simples facto traz atrasos na lida diária da casa e no quotidiano das gentes de tal ordem que a questão assume foros de verdadeira tarefa diária, como o nosso “ir às compras” ou “ir tratar de um assunto à cidade”.

Desta forma, a importância da água e do seu abastecimento próximo é um pouco “maior” para comunidades empobrecidas que, para obter um pouco dela, são obrigadas a calcorrear centenas de quilómetros por mês, sempre debaixo de um sol impiedoso.

Quando, em finais de Março, a Helpo inaugurou dois poços junto a duas escolas que não tinham água pelo menos a três quilómetros de distância, as populações rejubilaram e agradeceram. Houve festa, em Makassa e em Natchetche. Houve discursos formais e gargalhadas informais, deles e de nós, houve música ao vivo, houve sumo, houve brilhos nos olhares e alegria nos sons. Algumas crianças brincavam na água, como se esse gesto fosse exorcizar o peso que tanto os oprimiu desde que nasceram.

Mas mais que o arrebatamento das mães emocionadas a apertarem-nos o braço quando viram água a jorrar, mexia connosco a vigilância militante de adultos e meninos durante a prospecção do furo.

Fazer um furo pode durar mais ou menos tempo. Obviamente. Mas leva sempre o seu tempo. Primeiro, é necessário que, através de tradições ancestrais ou de técnicas modernas, algo ou alguém afiance que corre água naquele ponto, vários metros abaixo da superfície. Depois, a máquina entra em acção. O problema está em que, mesmo que seja verdade que algures ali corre água, seja a vinte ou a quarenta metros de profundidade, pelo caminho pode encontrar-se o maior inimigo da empreitada: rocha. Se surgir um veio de rocha no caminho do furo, nada há a fazer senão desistir e tentar de novo noutro lado.

Como todos sabem disso, ninguém larga de junto da máquina. Como se estivessem aguardando pelo desfecho de um parto difícil, com curiosidade e tensão, com medo e ansiedade, com um desejo genuíno de que tudo corra bem e com um receio não menos verdadeiro que num segundo o sonho se desfaça. É nesse momento que nos apercebemos claramente da importância daquilo que estamos a fazer. Mais até do que no momento da inauguração em si.

Todas as intervenções são importantes, mas a verdade primordial é que sem água não existe vida. E com tanto tempo e saúde que são poupados com este tipo de intervenções a esta gente que teve de caminhar e sofrer tantos anos, aqui encontramos um sentido. Um fim e um propósito.

domingo, 17 de maio de 2009

O País da Kalash e do Refresco.

Hoje fui à feira. Muita gente, muito barulho, mas bem mais civilizada que algumas de Portugal: pelo menos não há encontrões e os maus cheiros são tão maus como os de Cerveira ou os de Espinho.

Foi a segunda vez, já lá tinha ido há duas ou três semanas. Mesmo assim, havia alguma tensão no ar. Ou então na minha cabeça. Não é coisa simples, isto de ser ave rara.

Fica junto a uma das principais avenidas da cidade. Há realmente muita gente e a confusão é grande. Vende-se tudo: camas, colchões, portas, comida, tecidos, utensílios de cozinha, telas pintadas, roupa, calçado, catanas, instrumentos musicais, colares, pulseiras, enfim... Hoje estava particularmente quente e acho que comecei a sentir o cérebro a cozer devagar debaixo deste sol que parece um cão a morder a cabeça... ou então já é uma situação crónica e só reparo com o calor...

Um rapaz seguia-nos desde que chegáramos. Mas a discrição não era a sua principal característica e acabou por desistir quando se viu observado por todos os lados.

Os polícias passeiam-se, exibindo a arma pessoal, uma AK-47, também conhecida por Kalashnikov. Moçambique é o único país do mundo que tem na sua bandeira nacional uma arma, neste caso, uma Kalashnikov.

Acho uma coisa absolutamente normal, isto de se elevar à categoria de símbolo nacional uma arma de guerra. Portanto, compreende-se o orgulho dos homens. Eu também não me importaria de carregar uma esfera armilar se tivesse a honrada missão de proteger os meus concidadãos. Essa e a de extorquir estrangeiros.

Estava eu muito calmamente sentado à espera que a comitiva aviária avançasse, quando dois desses senhores me abordaram e pediram o passaporte. Nunca ando com o passaporte, mas antes com uma fotocópia autenticada no notário. A fotocópia tem de ter o visto e a autorização de permanência - que são coisas diferentes. Ora, hoje como ia à feira e lá é comum haver assaltos às aves raras, decidi não levar documentos comigo... O passaporte estava em casa e o polícia deu logo a entender que a coisa não ia lá com um "desculpe".
Comecei então a imaginar a minha estadia dourada numa cela de dois por dois, depois de apanhar na boca como gente grande e andar a fugir de matulões solitários. Voltaria a ter o cabelo e a barba grandes, estilo Karl Marx. A minha mãe iniciaria uma campanha nacional estilo "Libertem o Nocas" e daria entrevistas chorosas ao Manuel Luís Goucha. Com um sorrisinho masoquista, resolvi calar-me e ver no que dava aquilo.

Perguntaram-me se alguém poderia trazer-me o passaporte. O meu colega de trabalho moçambicano estava comigo. Pedi-lhe para ir lá. Disse que sim, mas não devia estar com muita vontade.

É que, felizmente, são corruptos. A caminho do posto, fila indiana, eu tecnicamente já detido, o homem comete o erro de pedir moral para o refresco. O meu colega, habitualmente tão calmo, transfigurou-se. Lá lhe disse primeiro que estou no país da Kalash para ajudar. Ele não quis saber. Então lá o informou, de dedo no ar e enquanto me pedia o telemóvel para fazer a chamada, que conhecia o chefe dele, que por sua vez lhe trataria da sede com muito gosto quando soubesse que ele tinha pedido moral para refresco a um estrangeiro de uma ONG.
Então ele percebeu que, por muito grande que a arma dele fosse, nunca chegaria aos calcanhares da minha.

quinta-feira, 14 de maio de 2009

Mercado Negro.












Oitenta quilómetros a oeste de Nampula.

sábado, 9 de maio de 2009

O Homem e a Montanha.



Fecho os olhos, suspiro e encosto cansado à lama de parede podre e inspiro fundo esta rainha imponente que, pela sua existência, dita prepotente a existência do resto.
Abro os olhos, espanto e expludo, lavado na luz de sol bêbedo por esta outra lua que domina céus e dias, terras e noites, homens e bichos, mulheres e os que não vivem, num arrebatamento de totalidade, como se fosse o tempo aqui, suspenso, teu e meu.

O som suave e o sereno silêncio.

O Mundo prostrado... e eu.

sexta-feira, 8 de maio de 2009

segunda-feira, 4 de maio de 2009

A Arte da Dissimulação.


Aqui há uns dias, fui entregar portas e janelas para a cabana recém construída da escola primária de Teacane, destinada aos serviços administrativos. Não te espantes com o pomposo. Nota bem a palavra "cabana". De cinco por três, feita de lama seca e bambú. Estás a ver as construções que temos por lá? Com betão armado e aquelas ferros ao alto? O princípio é o mesmo. Mas em vez de betão, lama. Em vez de ferros, bambú. O piso é irregular, a paisagem é mato até onde a vista alcança. Os telhados são de capim seco, parecem a cabeleira de um chinês.
O animador dessa escola (ou seja, o professor que colabora com a nossa organização nas intervenções que fazemos lá) pediu para partir de Nampula connosco. E lá fomos.
A viagem leva cerca de quarenta minutos. Os primeiros dez, pela estrada de Angoche, a que liga Nampula àquela cidade costeira, a cerca de três horas de distância, sempre por terra batida. Depois, ao pé das torres de telecomunicações, corta-se à direita, numa entradinha que mal se vê entre o capim de dois metros.
Depois, o costume. Caminho de cabras, com a largura de um carro, muitas vezes com fossos capazes de pôr-me a ver o mundo a quarenta e cinco graus... quando não é mais... nesses momentos, vou muito devagar e de olhos bem fechados... De vez em quando, um miúdo ou uma galinha a atravessar-se à frente. Sempre saídos a correr do meio do maldito capim que mais parece uma parede que não deixa ver nada. Às vezes, as galinhas correm mas em frente, não saindo do caminho. Expoentes do nível intelectual dominante. Outras vezes, mamãs com um peito de fora e um bebé às costas, meio atarantadas pela interrupção das lides diárias, a ver quem passa.
Nesses quarenta minutos fui conversando com o animador. É uma das pessoas que mais apreciei nesta terra. Julgo eu, com cerca de quarenta anos de idade, é uma pessoa ponderada e assertiva, que gosta mais de estar calado do que de falar demais. Nunca diz asneiras. Antes de dizê-las, pergunta. Por isso, nunca as diz.
Quando ainda íamos pela estrada de Angoche, a propósito já não sei de quê, queixei-me das estradas de Moçambique. Que em Portugal, antigamente, levava-se cinco horas para ir da capital para a segunda maior cidade do país. Mas que esse tempo foi reduzido para metade quando um governo de boa memória decidiu investir nas vias de comunicação. E expliquei-lhe as vantagens para a economia de um país existirem boas vias de comunicação, onde as deslocações sejam rápidas, seguras e, por isso, mais rentáveis. Ele mostrou espanto.
Animado, perguntou-me que mais eu pensava que poderiam ser boas apostas para o país.
Falei do sabido. Da educação. De como é importante ter as crianças na escola. E ele respondeu: e hospitais?!
E eu perguntei: de que vale ter hospitais se não tiver médicos nem enfermeiros formados? Calou-se.
Então, avancei. Ora pense lá bem. Se, daqui a uma geração, toda a gente com menos de trinta anos souber ler e escrever e uns outros milhares tiverem cursos superiores, o que vai acontecer? Ele disse algo como "será muito bom"... Disse-o como diria nunca provei lagosta, mas dizem que é muito bom. Eu respondi: será bom?... mas sabe para quê? Para a democracia.
Aí ele riu, meio envergonhado, meio assustado.
Sabe, meu amigo, antes de construir estradas, escolas ou hospitais, sabe do que precisa mesmo a sua terra?
Pelo canto do olho, senti-o a olhar para mim. Devia estar com os olhos esbugalhados, como uma criança que espera para saber que prenda lhe deixou o Pai Natal. Diga doutor, diga!...
Acabar com a corrupção.
Com esta maldita doença que mina tudo e todos em toda a parte. Com a corrupção que pode ser apenas o polícia de trânsito que inventa transgressões para pedir cem ou duzentos paus ao pobre diabo que lhe apareceu à frente, como pode ser o presidente da república que tem quotas em todas as grandes empresas do país, às quais são adjudicados, directa ou indirectamente, todos os grandes concursos públicos...
...enquanto a mulher dele diz na televisão às populações de uma determinada província assolada pela fome para que elas comam os macacos que neste momento são uma praga naquela zona. Estilo dois em um, matar dois coelhos de uma cajadada só. Já que deu a ideia, podia dar uma receita ou duas... presumo que coma imenso macaco, a senhora.
Ele continuava a rir, nervoso. Eu também ri e perguntei veja lá, não vai dizer agora que é secretário do Partido e que amanhã de manhã já estou na fronteira do Malawi com um chuto no rabo e umas costelas partidas!...
Que não, não se preocupe... Mas tem razão, doutor. Tem toda a razão.
Claro que tenho razão! Já imaginou os milhões de redes mosquiteiras (melhor prevenção da malária), as toneladas de sementes (sempre em falta), os medicamentos (praticamente inexistentes fora da cidade) que as pessoas comuns poderiam ter e os quadros negros novos (mais raros que água), o giz, lápis e canetas (inexistentes), os livros escolares (inexistentes), os cadernos (inexistentes), as salas novas (...) que a sua escola e tantas outras poderiam ter, se não se estivesse a construir um palácio presidencial megalómano de milhões de dólares a oitenta quilómetros daqui? Bastava isso, quanto mais o resto. Isso também é corrupção.
Ele calava-se e ia-se afundando no assento do carro. Está a falar bem, doutor, está a falar bem...
Mas à medida que o doutor ia falando e ia pensando, ia concluindo que Moçambique é tão corrupto como outros países ditos desenvolvidos.
A diferença está na arte da dissimulação. Arte que, neste país, pela manifesta desnecessidade que decorre do embrutecimento ignorante em que vive anestesiada toda a população, não teve de ser sublimada à perfeita capacidade de representação, mascarada de assertividade e falsa serenidade, da "vital importância da estabilidade", mascarada dessa política afectada e efeminada, liderada e seguida pelos mais fracos dos fracos, que vêem nessa "estabilidade" versão charco de água choca uma oportunidade de vingarem os tristes dias de adolescência em que eram insultados e batidos e gozados por todos os outros e outras... Esse é o mundo desenvolvido.
Aqui não é preciso vestir fatos bonitos, dizer palavras tão sedutoras quanto assignificadas, mostrar uma falsa indignação virginal por se ser acusado de um crime quando há suspeitas fundadas para isso. Porque ninguém sabe ler, ninguém lê, ninguém quer saber. Porque aqui passa-se fome e nunca se sabe o dia de amanhã. Aqui, bênção de Deus não é ter emprego, ter carro e ter casa. É ter o que comer pelo menos uma vez por dia.