terça-feira, 30 de junho de 2009

Os Amigos da Rua.



O Gabriel, de dezassete anos e o Paulino, de dez. São alguns dos meninos da rua que se agarram ao carro a pedir o que quer que seja sempre que alguém estaciona na zona "nobre" de Nampula.

Hoje fui despedir-me deles. Durante estes meses ralhei, gritei, garanti que não daria coisa alguma, ameacei que os levaria para o orfanato, mas ia dando umas sandes, um rissol, um pacote de bolacha. Hoje, com o frio que faz, que para nós é pouco, mas que para eles é muito, resolvi presentear a despedida com uma camisolita mais quente que os autênticos trapos que traziam. Ficaram contentes. Finalmente o mucunha rabugento tomou uma atitude...

Agora só faltaria ao Gabriel deixar o esquecimento do vinho e ao Paulino aprender a ler e a escrever, para que um rumo, qualquer um mas pelo menos um, pudesse ser dado a estas frágeis vidas...

O Inverno do Avesso.


Ao longo destes meses, contei-te algumas peripécias desta outra história que resolvi contar.

Fui contando mais dos meus pensamentos que dos meus olhos. E, ao ver atrás, receio que não tenha explicado o suficiente ou tenha turvado a tua própria vontade, que talvez fosse mais saber como é do que como eu penso que é.

Perdoa-me o egoísmo. A verdade é que avisei. Eu disse-te que ia escrever para mim.

Não sei se é do calor. Se é do cheiro. Se é das pessoas. Se é do diário choque frontal com o desvalor da vida e a vulgaridade da morte. Se é de comer frango e arroz com as mãos numa cabana de lama e capim perdida ninguém sabe onde, com o rosto e a roupa cobertos de pó, sob o olhar envergonhado de uma velha senhora que responde com tecidos garridos e rugas esculpidas a escopro do tempo. Se é do sorriso sol que sai de meio metro e vinte quilos de gente, roto e descalço, à mais pequena carícia que lhe toca. Se é da consecutiva sinfonia de cores e formas que o céu toca todos os dias, cantando orgásmico a noite que chega, imperadora reclamando o seu lugar, uma música que se repete e repete, como se Deus passasse aqui todos os dias a caminho de casa para descansar.

Sei que, mais uma vez nesta vida, depois do Oriente, também o Sul faz dos olhos e dos pensamentos outros que não os que aqui chegaram.

É assim este Sul e é isto que ele faz. O sítio onde a água espira no sentido contrário ao dos ponteiros do relógio e onde eu sou ser de Inverno.

sábado, 27 de junho de 2009

O Dia da (In)dependência.


Ontem celebrou-se o Dia da Independência. Dia em que Moçambique se libertou das correntes do colonialismo e em que alcançou finalmente a vitória final na guerra de libertação do povo oprimido.

Nas televisões, um corropio de eventos e declarações patrióticas. As pessoas da rua afirmam satisfeitas: sou independente.

Curioso.

Tudo isto faz interrogar-me sobre quem será pior.

Eles, porque se o repórter os deixa falar um pouco mais, dizem logo que à parte da independência, agora (trinta e quatro anos depois) só falta vencer a fome e a miséria. Só. E pôr estradas onde um carro não se parta em dois, pôr luz e água em oitenta por cento do território, fazer escolas, hospitais, pontes... A propósito de pontes, o presidente afirmou que uma enorme vitória do povo e do partido está prestes a chegar: a conclusão da construção da ponte sobre o Rio Zambeze, que permitirá finalmente ligar o país de norte a sul por estrada. Esqueceu-se de referir que são os portugueses que estão a fazê-la. Para não falar de Cabora Bassa.

(A vitória. Conseguida porque lá longe houve gente que quis acabar com a guerra. Mas aqui a versão é outra. Como em qualquer outro local, aqui a História também é contada por quem ficou, não por quem foi.)

Mas não sei quem é pior.

Nós, porque no meio desta crónica ingratidão e desavergonhada distorção da História, sobressaem os brancos que por aqui vagueiam. Uns há muito, outros há pouco. Mas que além da cor têm algo em comum: a atitude. Sobranceira, paternalista, voz forte vociferando comandos disfarçados com uns "por favores" e uns "obrigados" aqui e ali. Versões tímidas do patético capataz de fazenda que referi aqui há uns tempos a propósito da diferença do braço. Bom, mas esse ao menos era honesto e total no que dizia.
Os da cor certa têm vergonha. Ou medo. Um medo que vem do mais recôndito canto escuro da alma, que deve ter acompanhado sempre todos os povos colonizadores, todos os dias, em todos os locais: o medo indizível que um dia aquele temor reverencial que "eles" ainda hoje mostram, o maldito "sim patrão, não patrão", um dia se estatele como uma máscara cai desamparada e que a vingança por esse perpétuo jeito insidioso de mandar e de se fazer superior se abata sobre si como um leão esfaimado.
Consigo ver tão bem nos seus olhos um brilho de satisfação, de inevitabilidade fatal, quando dão uma ordem e ela é obedecida imediatamente sem uma pergunta, sem um olhar. A pequena consolação dos pequenos homens.  

Eu faço a minha parte. "Não sou teu patrão". "Não sou teu boss". "Estás a pedir-me dinheiro porquê, porque sou branco? Achas que sou rico por ser branco?". Partilho as tarefas, mesmo as pesadas. Não interrompo ninguém para que as minhas necessidades se sobreponham às dos outros. Digo e repito ao Zeferino que nós podemos ser amigos, apesar de ele dizer insistentemente que não, que somos diferentes e que eu estou acima.

Mas sinto-me como se caminhasse em cima de um tapete rolante.

Tem-me acontecido várias vezes concluir que "eles" não querem verdadeiramente o nosso apoio. Fazem questão de mostrar que só intervimos devido ao seu consentimento e que, por isso, toda a intervenção não é intervenção estrangeira, é intervenção estatal por intermédio de estrangeiros. Dificultam, burocratizam. Vejo-me várias vezes a ter de pedir ao Estado para poder ajudar. Paradoxalmente, os beneficiados, quando as coisas demoram um pouco mais ou não chegam na medida ou no modo desejados, olham-nos de soslaio e queixam-se do mau apoio prestado.

Para tapete rolante, prefiro outros, menos complicados.

segunda-feira, 15 de junho de 2009

A Clara Certeza da Escolha.


Por vezes, há certos momentos breves que definem o resto da vida de quem os vive. Não falo daqueles que por si mesmos alteram inevitavelmente o rumo dessa vida, mas daqueles que, depois de sucederem, obrigam o indíviduo a olhar o espelho e a fazer uma escolha que, essa sim, alterará a sua vida.

Pode ser o nascimento de um filho; a morte de um parente; uma doença séria; uma promessa feita a alguém; ou o confronto directo e imediato com a eventualidade da sua própria morte.

A necessidade de fazer uma escolha em dois segundos, que pode determinar o resto da vida. A certeza clara que, dessa escolha, feita de súbito, sem tempo para ponderar, pode resultar a própria morte. Essa é uma experiência pela qual nem todos passam, mas que é encantadoramente saudável, na medida em que mostra de modo muito transparente aquilo de que somos feitos.

Eu só fui tomar um café depois de jantar. Toda a vida o fiz. Em Portugal, no bairro mais obscuro de Saigão ou numa cidadezinha escura e fria da Europa de Leste, à noite, de dia, nunca deixei de tomar o meu café quando realmente queria um. Faz parte de ser Português, acho eu. E faz parte de mim.
Porém, na verdade, o café foi desculpa, porque o que se procurava mesmo era sair de casa, apanhar ar, desentorpecer as pernas, tentar atenuar um pouco esta sensação de prisão permanente, arejar a cabeça deste sufoco mental. Nada de mais. O café ficava a cem metros de casa. Não era pedir muito. E era a primeira vez que o fazia desde que pus pé nesta terra.







No regresso, tive o meu momento breve.






Mas essa é uma escolha.

A escolha de que falo é a que vem depois, em resultado da primeira. É da mesma forma inevitável, sendo a diferença entre elas haver nesta a possibilidade da reflexão e da planificação, onde existe ainda a vantagem de juntar outros elementos e outros momentos - mesmo que com menos impacto - ao juízo que está a ser formado.

São contas de deve e de haver.

Sempre me disseram para ter cuidado. A cidade não é muito agradável. Nunca me disseram propriamente que é um esboço de favela, onde não é possível dar um simples passeio à noite e onde é imperativo trancar as grades de fora, as grades de dentro e as portas da casa. Fui ficando a saber. E, desde há oito dias, fiquei a saber melhor.

E a necessidade da escolha, assim, sem que se peça ou se queira, impõe-se, inevitável.

segunda-feira, 8 de junho de 2009

Aparências e Ilusões.


Veja-se o anúncio de uma das operadoras móveis de Moçambique.




É assim, aqui. Ou querem fazer assim parecer.

domingo, 7 de junho de 2009

O Fantasma do Garrett.


Há um café que se chama Garrett. Fica num primeiro andar, com varanda, muito perto da residência do Governador.

Sobem-se as escadinhas estreitas, depois de deixar o carro e bufar cada vez mais seco que não às crianças pedintes que infestam as ruas. Agora já as ameaço que as levarei para o orfanato. Algumas assustam-se. Outras não sabem o que isso é.

As escadas terminam e, no final, todo o espaço fica à esquerda. Depara-se uma sala pequena, com três ou quatro mesas e o balcão, à esquerda também. Lá ao fundo, uma sala de bilhar, grande. E à direita, a varanda, maior que o resto do café, estilo esplanada. Há duas telas para projecção, uma dentro, outra fora. Todas as mesas e paredes são dominadas pelas cores e logótipo da maior empresa de comunicações móveis de Moçambique. Verde e amarelo. Tudo gasto e velho. Tudo bem. Tudo normal.

O gerente, um senhor de quarenta e muitos anos, indiano nascido português e filho do fundador do café, esforça-se por agradar aos que fazem lembrar-se de tempos melhores. Ele que o diz. Hoje tentou ligar o projector, mas não conseguiu. Portugal viu-se de longe, mais longe do que daqui aí, mas viu-se.

Ainda o jogo não tinha começado, outro homem, mal pediu, sentou-se. Como sempre, fiquei a observar fixamente sem dizer palavra, como se não estivesse ali, mas a deixar claro que estava. Era indiano de feições, cinquenta anos, barba grisalha de muçulmano, sem bigode, túnica branca comprida e aquele chapéuzinho redondo típico na cabeça. Tinha óculos, mas usava-os sustentados na testa, bem acima das sobrancelhas. As lentes tinham, na parte de baixo, uma alteração que já não via há anos – a parte para ler e ver ao perto. Podia estar numa manifestação anti-América no Paquistão, que não seria de estranhar.

Apresentou-se mas depressa disse que era difícil soletrar. E, sem que alguém lhe pedisse o que quer que fosse, puxou de uma caneta e escreveu com energia o seu nome num guardanapo. Mesmo apesar de a caneta não deixar tinta, ele continuava a escrever, como se visse algo a aparecer no papel. Emprestei-lhe a minha. Chamava-se Momadikhatir ou algo do género. Então lá explicou que quando foi levado pelo pai saudita e mãe indiana ao registo português de Nampula, o senhor do registo, provavelmente farto de nomes incompreensíveis, registou como ouviu. Porque deveria ser Momade (versão moçambicana de Mohammed) Ikhatir. Aliás, como professor que é, deveria merecer melhor tratamento, dizia. Logo ele, que após a independência, decidiu manter a nacionalidade Portuguesa, merecia mais. Merecia mais.

Depois começou a falar de futebol e nós para trás e nós para a frente, o gajo só serve para a formação ou para treinador adjunto e não acredito que ganhemos o resto dos jogos até ao fim. E percebi que estava a falar de Portugal.

Então não está triste por o seu Moçambique ter perdido (tinha acabado de perder dois zero com a Tunísia)?

O meu? O meu joga a seguir.

Como se se tratasse de um fantasma a assombrar despreocupado a casa em que viveu toda a vida, mas sem se aperceber de que já não há nada nem ninguém para assombrar.

sábado, 6 de junho de 2009

A Caminho de Mim.


Daqui a um mês, certo, estarei em casa da minha mãe.

A encher a boca o mais que posso com o amor salgado e doce, apurado e macio que por esta hora já ela deve estar a engendrar, com a lagrimita costumeira no canto do olho.
É uma lagrimita de mimo, mais do que de saudade. É de saudade, claro, mas o menos óbvio é ser mais de mimo. Pois é assim a minha mãe.
A lágrima que ela chora agora é de alegria muda, como a vergonha de uma criança apanhada que esconde um segredo, porque a distância, do tempo e da terra, é um enorme nada quando posta ao lado do amor que ela sabe que a sua para sempre cria traz por si. Como se dissesse e lamentasse, como se protestasse e amuasse, mas que no fundo sorri feliz, pois sabe que as coisas serão sempre como são e não mudarão.

É uma sensação que restabelece e reequilibra. A noção cada vez mais concreta e menos vaga da saída. Como se o raciocínio claro começasse a acordar de uma longa hibernação, de um hipnotismo necessário à sobrevivência mas caro à vontade e ao carácter.

Um mês. Espera-me com um pedaço de terra para eu beijar.

terça-feira, 2 de junho de 2009

Porcos de Pérolas.


Vais desculpar-me por estar sempre a chatear-te com a mesma conversa, mas se não desabafar, isto não vai lá.

Ontem foi o Dia Internacional da Criança. Como em tudo aqui, o paradoxo é a regra. Então, a festa é grande. Não chega ao nível do Dia Internacional da Mulher - que é feriado nacional (???) - mas é dada uma grande atenção à criança no dia Um de Junho. Ou dito de outra forma: no dia Um de Junho, é dada uma grande atenção às crianças de Moçambique. Ou ainda de outra: em Moçambique, é dada uma grande atenção à criança todos os dias Um de Junho de cada ano.

Fui claro?

Como se toda a negligência, toda a corrupção, do governo, dos professores, dos pais e de todos, que afectam directamente os estômagos e as mentes de uns pobres desgraçados de um metro e vinte, que são a (única) coisa mais bela que há nesta terra, negligência e corrupção que duram trezentos e sessenta e quatro dias do ano e ainda mais este, se esfumassem no meio dos discursos de cobra gorda e nos refrescos de trinta cêntimos.

Noventa por cento das crianças de Moçambique comem amendoim, mandioca e cana de açúcar. Só. Algumas comem também arroz e/ou farinha cozinhada com água. Frango, muito muito raramente. A água é invariavelmente não potável e por tudo isso é que andam todos de barriguinha inchada e com o açúcar a rebentar as veias - depois aparecem feridas estranhas na pele e dizem que vêem mal...

E quando o branco rico e burro vai a uma escola de mil crianças fazer a festa do dia da criança, com torneios de futebol, feijoada de arroz, frango e repolho, prato cheio, alguns a repetir segunda e terceira vez porque a fome é muita e são todos geneticamente vigaristas, isto para todos - professores e tubarões incluídos, e depois ainda um sarau com os trabalhinhos que as crianças prepararam para este dia (pecinhas de teatro, canções, poemas, etc), o que diz o preocupado agente governamental que veio agraciar todos com a sua presença neste importante dia da criança e que só com essa majestática benesse mostra a genuína e importante preocupação dos seus chefes com os meninos?















"FEZ FALTA O SUMO".