quarta-feira, 20 de maio de 2009

O Belo e o Real.


Quando se reflecte sobre o fim e o fundamento da acção no terreno de uma organização humanitária, há várias ideias que surgem e que, aparentemente, assumem importância semelhante. Porque as solicitações são muitas e todas parecem demasiado urgentes. Sejam a favor de um indivíduo ou de vários, as intervenções em geral são entendidas como benéficas e úteis, sobretudo aos olhos do observador externo.

São conceitos complexos. Fim e fundamento implicam juízos morais, que habitualmente variam, consoante a pessoa e consoante o contexto, sem que isso afecte a convicção pessoal da validade de cada uma. O que traz naturalmente alguma dificuldade no encontro de consensos.

Há porém, algumas dessas ideias que, pela característica intrínseca de elementaridade e pela abrangência universal dos seus efeitos, tornam-se um pouco “mais importantes” para a maioria dos juízos e das convicções.

Moçambique é um país que, apesar da muita chuva que cai na estação húmida, sofre com a falta de água. E isto acontece porque não existem infraestruturas que garantam não só o armazenamento da água mas também, e sobretudo, a distribuição em rede. O que acarreta uma realidade bem conhecida no interior de Portugal até há poucas dezenas de anos, que é a necessidade de percorrer muitos quilómetros para ter alguma água em casa. Este simples facto traz atrasos na lida diária da casa e no quotidiano das gentes de tal ordem que a questão assume foros de verdadeira tarefa diária, como o nosso “ir às compras” ou “ir tratar de um assunto à cidade”.

Desta forma, a importância da água e do seu abastecimento próximo é um pouco “maior” para comunidades empobrecidas que, para obter um pouco dela, são obrigadas a calcorrear centenas de quilómetros por mês, sempre debaixo de um sol impiedoso.

Quando, em finais de Março, a Helpo inaugurou dois poços junto a duas escolas que não tinham água pelo menos a três quilómetros de distância, as populações rejubilaram e agradeceram. Houve festa, em Makassa e em Natchetche. Houve discursos formais e gargalhadas informais, deles e de nós, houve música ao vivo, houve sumo, houve brilhos nos olhares e alegria nos sons. Algumas crianças brincavam na água, como se esse gesto fosse exorcizar o peso que tanto os oprimiu desde que nasceram.

Mas mais que o arrebatamento das mães emocionadas a apertarem-nos o braço quando viram água a jorrar, mexia connosco a vigilância militante de adultos e meninos durante a prospecção do furo.

Fazer um furo pode durar mais ou menos tempo. Obviamente. Mas leva sempre o seu tempo. Primeiro, é necessário que, através de tradições ancestrais ou de técnicas modernas, algo ou alguém afiance que corre água naquele ponto, vários metros abaixo da superfície. Depois, a máquina entra em acção. O problema está em que, mesmo que seja verdade que algures ali corre água, seja a vinte ou a quarenta metros de profundidade, pelo caminho pode encontrar-se o maior inimigo da empreitada: rocha. Se surgir um veio de rocha no caminho do furo, nada há a fazer senão desistir e tentar de novo noutro lado.

Como todos sabem disso, ninguém larga de junto da máquina. Como se estivessem aguardando pelo desfecho de um parto difícil, com curiosidade e tensão, com medo e ansiedade, com um desejo genuíno de que tudo corra bem e com um receio não menos verdadeiro que num segundo o sonho se desfaça. É nesse momento que nos apercebemos claramente da importância daquilo que estamos a fazer. Mais até do que no momento da inauguração em si.

Todas as intervenções são importantes, mas a verdade primordial é que sem água não existe vida. E com tanto tempo e saúde que são poupados com este tipo de intervenções a esta gente que teve de caminhar e sofrer tantos anos, aqui encontramos um sentido. Um fim e um propósito.

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