domingo, 17 de maio de 2009

O País da Kalash e do Refresco.

Hoje fui à feira. Muita gente, muito barulho, mas bem mais civilizada que algumas de Portugal: pelo menos não há encontrões e os maus cheiros são tão maus como os de Cerveira ou os de Espinho.

Foi a segunda vez, já lá tinha ido há duas ou três semanas. Mesmo assim, havia alguma tensão no ar. Ou então na minha cabeça. Não é coisa simples, isto de ser ave rara.

Fica junto a uma das principais avenidas da cidade. Há realmente muita gente e a confusão é grande. Vende-se tudo: camas, colchões, portas, comida, tecidos, utensílios de cozinha, telas pintadas, roupa, calçado, catanas, instrumentos musicais, colares, pulseiras, enfim... Hoje estava particularmente quente e acho que comecei a sentir o cérebro a cozer devagar debaixo deste sol que parece um cão a morder a cabeça... ou então já é uma situação crónica e só reparo com o calor...

Um rapaz seguia-nos desde que chegáramos. Mas a discrição não era a sua principal característica e acabou por desistir quando se viu observado por todos os lados.

Os polícias passeiam-se, exibindo a arma pessoal, uma AK-47, também conhecida por Kalashnikov. Moçambique é o único país do mundo que tem na sua bandeira nacional uma arma, neste caso, uma Kalashnikov.

Acho uma coisa absolutamente normal, isto de se elevar à categoria de símbolo nacional uma arma de guerra. Portanto, compreende-se o orgulho dos homens. Eu também não me importaria de carregar uma esfera armilar se tivesse a honrada missão de proteger os meus concidadãos. Essa e a de extorquir estrangeiros.

Estava eu muito calmamente sentado à espera que a comitiva aviária avançasse, quando dois desses senhores me abordaram e pediram o passaporte. Nunca ando com o passaporte, mas antes com uma fotocópia autenticada no notário. A fotocópia tem de ter o visto e a autorização de permanência - que são coisas diferentes. Ora, hoje como ia à feira e lá é comum haver assaltos às aves raras, decidi não levar documentos comigo... O passaporte estava em casa e o polícia deu logo a entender que a coisa não ia lá com um "desculpe".
Comecei então a imaginar a minha estadia dourada numa cela de dois por dois, depois de apanhar na boca como gente grande e andar a fugir de matulões solitários. Voltaria a ter o cabelo e a barba grandes, estilo Karl Marx. A minha mãe iniciaria uma campanha nacional estilo "Libertem o Nocas" e daria entrevistas chorosas ao Manuel Luís Goucha. Com um sorrisinho masoquista, resolvi calar-me e ver no que dava aquilo.

Perguntaram-me se alguém poderia trazer-me o passaporte. O meu colega de trabalho moçambicano estava comigo. Pedi-lhe para ir lá. Disse que sim, mas não devia estar com muita vontade.

É que, felizmente, são corruptos. A caminho do posto, fila indiana, eu tecnicamente já detido, o homem comete o erro de pedir moral para o refresco. O meu colega, habitualmente tão calmo, transfigurou-se. Lá lhe disse primeiro que estou no país da Kalash para ajudar. Ele não quis saber. Então lá o informou, de dedo no ar e enquanto me pedia o telemóvel para fazer a chamada, que conhecia o chefe dele, que por sua vez lhe trataria da sede com muito gosto quando soubesse que ele tinha pedido moral para refresco a um estrangeiro de uma ONG.
Então ele percebeu que, por muito grande que a arma dele fosse, nunca chegaria aos calcanhares da minha.

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