quinta-feira, 2 de abril de 2009

A Famosa Galinha-Brava.


De manhã bateu um peixe à porta de casa para comer assado com batatinhas ao almoço feito pelo zeferino como ele faz sempre pois só sabe fazer daquela única maneira que um dia qualquer alguém ensinou a ele e a todos os meninos homens que assolam a casa todos os dias para vender peixe e verdes e carne como abutres de ver o homem do cesto de cinquenta quilos à cabeça e água fétida a descer-lhe pelo corpo já de si suado e sem banho e os olhos riscados de vermelho e de morte e de exaustão e de pobreza e de ignorância e de tudo e tive pena do encharcado e abri o peixe na guelra que a mãe ensinou e vi cor-de-rosa. E tirei um quilo da cabeça do encharcado ignorante pobre exausto morto sujo suado de quem tive pena.

Tudo se perde e tudo se tira.

Existe um supermercado com ar disso em Nampula. Chamam-lhe Shoprite, que deve ser lido como se lê Sprite, ou seja, com o “i” aberto, para que pareça que se está a dizer “Shop Right”. É um supermercado, que faz lembrar o Pingo Doce da minha vida, o que fica na Avenida da República, em Gaia, aquela que aparecia nas notícias de trânsito antes de haver mais estradas, variantes e circulares do que há pessoas. Em Gaia. Antes era Pão de Açúcar. Eu preferia Pão de Açúcar, com o elefante. E os sacos plásticos eram laranja.


O Shoprite tem de tudo um pouco, incluíndo a invejável aura de local muito perigoso. Não lá dentro. Lá dentro, o perigo está na prateleira da carne, normalmente de cores variadas e cheiros intensos. É cá fora. Não para mim, ou para ti, mas para o carro. Se fores ao Shoprite, think rite as well, don’t take your car. Porque a menos que já conheças a malandragem que por ali passa os dias ou que dês sempre a moedinha de dez meticais, vai faltar-te alguma coisa. Um espelho. Um pisca. Um dia destes, uma jante. Ah e não têm fiambre. Mas cá fora, a batata é mais barata. Na candonga, que aqui é pomposamente designada mercado informal. Convenhamos, seria um passo civilizacional demasiado largo chamar-lhe mercado negro. Quando isso acontecer, as ONGs deixarão de existir.

Não me importam muito as convenções nem as tradições nem as conveniências nem as formatações nem as normas nem as vergonhas nem aquilo que é esperado. Importam-me mais as memórias e as sinceridades, as verdades e as saudades, as ansiedades e as memórias que tenho de tempos e de momentos que recordo tão bem e que são tão reais que ainda consigo sentir e cheirar e ver que tenho a certeza que esses tempos não são tempos, são realidades que resistem e que existem agora algures num espaço que não sei onde fica, mas que sei que pelo menos da minha memória não fogem. Na minha memória estão seguros. Estão comigo.

Nada fica e nada regressa.

É como os amigos que nos morrem. Ou que não morrendo, deixámos para sempre. Já falei disto antes. É como eles. Que se vão, que nunca mais veremos mas que no fundo ficam para sempre no momento em que foram. Nas nossas cabeças. Nas nossas memórias. Eles continuam a viver, apenas com o detalhe de nunca envelhecerem. Eles ficam lá. Eu tenho, não tive, amigos que o foram e que o são e que só vão morrer quando eu morrer. Somente muito mais novos que eu. Eu também vou morrer, com muitas idades, em muitas memórias, em muitos locais, muitas vezes. E em ti, também.

Mas choramos sempre, não é? E às vezes choramos tanto…

Só. No meu caminho. Estreito, entre vozes e risos. Vozes que são a minha companhia, risos que me mostram os perigos. Como fantasmas.

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