terça-feira, 7 de abril de 2009

A Diferença do Braço.

Hoje pela manhãzinha participei na abertura oficial do ano lectivo numa escolinha (escola pré-primária) que a Helpo vai apoiar em breve. A escolinha foi aberta por uma ONG que estava por aqui e fechou assim que ela saiu de Moçambique. Aqui é assim. Agora foi reaberta, por acção da Igreja e do Missionário, porque fica no território da sua paróquia. Fui buscá-lo ao Marrere, onde tomei cafezinho fresco e ainda discuti o calor, o frio e a malária, e seguimos pela picada até ao bairro de Nacahe.
Sentados em círculo, por baixo da maior árvore das redondezas, nós, os papás, as mamãs, o ancião da comunidade e, claro está, no centro do círculo, as crianças, em estilo de cerimónia oficial.
A tristeza dos líderes locais pelas ausências do responsável local do Ministério da Educação e do correspondente ao nosso Presidente de Junta era patente. O director da escolinha conduzia a cerimónia, orientando-se criteriosamente pelo papelinho que continha o programa. Em cada momento, estavam previstas intervenções dos dois ausentes. Ele lia, com um misto de medo e vergonha: "ágôra o Senhor Chefi do Posto Adiministrativo dêvêria dizer algumas pálávrás, más... não marcô prêsença...". Repetiu esta frase uma meia dúzia de vezes, sempre a encolher os ombros, sempre que o programa previa.
Havia uma criança subnutrida. Nota-se imediatamente. São crianças diferentes e não é só na magreza anormal.
Visitámos as instalações. Observámos os monitores a darem biscoitos e refrescos às crianças com grande formalismo e protocolo, porque afinal, estavam lá os mucunhas (brancos, mulatos ou estrangeiros), mesmo apesar de o poder político ter-se borrifado completamente para aquela pequena comunidade suburbana de Nampula. Afinal de contas, o convite não incluía almoço. Compreende-se. Só mesmo um mucunha idiota que aprecia especialmente levantar-se às seis da manhã para aceitar um convite para uma cerimónia chata que, ainda por cima, não inclui almoço.
As horas passaram e foram desaguar num almoço com um conjunto de portugueses, sem que tal estivesse previsto. Em casa de um português, há muitos anos em Moçambique, pessoa bem colocada que conseguiu construir a sua casinha de campo, com direito a cozinha rústica no exterior, com forno a lenha, bar para os amigos e uma longa mesa por baixo do alpendre.
Comeu-se muito bem. Bebeu-se também muito bem. E conversou-se melhor. O almoço terminou às dezassete horas, após uma divertida partida de loto.
Com tudo isto, não deixei de pensar naquilo que um director de uma escola me disse ontem à noite, ao telefone.
Organizei uma reunião com os animadores da Helpo nas diferentes escolas e escolinhas onde a Helpo intervém - são professores das escolas, que nos ajudam localmente nas nossas tarefas. Aproxima-se uma das duas alturas anuais de envio de carta dos meninos aos padrinhos portugueses e, considerando que são duas mil e tal crianças apadrinhadas, há que preparar com antecedência esse envio.
Há uma comunidade que não tem animador há uns dois meses. Nessas situações, para efeitos de relacionamento institucional com a Helpo, quem responde é o director da escola. Ora, os animadores recebem uma pequena compensação pela ajuda que dão à organização. Se eles não ajudam, se não trabalham ou se, simplesmente, não existem, não há lugar ao pagamento dessa compensação.
Aqui, o mucunha é um multibanco, dizia hoje o nosso anfitrião ao almoço. Nada mais que isso. E tem que dar, senão não serve de nada e "está estragado". Pois. É mesmo assim. Acontece que a Helpo não é um multibanco. A Helpo ajuda com materiais, não com dinheiro. E este Senhor Director tem uma enorme dificuldade em entender isto. Entendeu, enquanto havia animador, que pelo mero facto de ser director da escola e o animador ser um professor da mesma, deveria ter uma percentagem daquilo que o animador recebia da Helpo, fazendo pressões e ameaçando o animador para que este o informasse sempre que recebia e para que lhe desse uma parte. Não havendo animador - ó maravilha! - o dinheiro que os idiotas dos mucunhas dão deveria ser para ele.
Ontem, à frente de doze ou treze animadores, disse-lhe olhos nos olhos que não haveria pagamento para a escola dele, primeiro porque não havia animador, segundo porque não tinha sido feita qualquer intervenção naquela comunidade no mês de Março. Ficou boquiaberto. Ficou tão siderado que balbuciou uma desculpa qualquer e saiu imediatamente. Esperou cerca de duas horas (tempo que eu fiz a reunião durar até chegar à parte dos pagamentos, para obrigá-los a trabalhar e a ficar na reunião) sem pronunciar uma palavra. Estava, autenticamente, à espera de receber, nada mais. Quando chegou à parte que o tinha trazido à reunião, correu-lhe mal. Não recebeu. À noite telefonou-me, dizendo num tom arrogante que considerava isto uma injustiça, porque outras comunidades tinham recebido sem fazer nada. Respondi-lhe que não tenho satisfações a dar-lhe, que pago a quem entendo que devo pagar. E que ele devia ter vergonha, porque em vez de pedir ajudas específicas para as crianças ou para a escola, só sabia pedir dinheiro para ele. O mesmo que se vangloriava de ter acalmado a população local que andava convencida que os brancos andam a roubar crianças às populações do mato, quando o que provavelmente fez foi apenas dizer que o tinha feito. E que não metia medo a ninguém.
A questão é que aqui ninguém vem dar educação a ninguém. Não vale a pena tentar educar quem não quer ser educado. Quem mata colegas de trabalho porque eles andam mais no carro do patrão. Quem não quer saber de limpar e dar de comer ao filho de ano e meio que pesa cinco quilos. Quem não vai a uma cerimónia que deveria ir porque não há almoço. Quem só tapa os buracos da estrada porque por ali passa todos os dias a esposa de um alto funcionário do Estado a caminho das aulas nocturnas na universidade. Quem mete ao bolso o dinheiro que foi dado para comprar traves de madeira para sustentar um telhado de uma sala de escola e vai ao mato cortar dois pés de eucalipto para fazer de trave. Quem rouba peças de um poço acabado de estrear na escola e que aliviava as vidas de centenas de pessoas. Quem obriga um homem a passar vinte e seis horas à porta da minha casa, supostamente a fazer protecção à mesma e que só o substitui porque o branco vai à sede da empresa de segurança perguntar se vão ficar à espera que o desgraçado caia para o lado, porque enquanto foi o desgraçado a pedir para ser rendido, tal não aconteceu. Quem ameaça com a manipulação e a fúria de uma população inteira só porque não recebeu o subsídio que entende ser seu por direito divino.
O meu anfitrião de hoje explicava tudo isto de forma colorida, batendo no seu antebraço esquerdo com força. "A diferença está aqui". Disse ainda outras coisas que me escuso a reproduzir. Porque não gostei e porque me chocaram.
Mas a verdade é que seja qual for a razão, África é o que é e não acredito que dentro de cem anos seja diferente. Se é da pele, se é do calor ou se é da colonização, não sei. O que sei é que o Missionário tinha razão, hoje de manhã, enquanto andávamos aos solavancos na picada: Deus é preto. E é preto porque só sendo preto é que poderia favorecer esta terra com tantas riquezas e fartura, que leva esta gente a fiar-se na velha máxima "Deus dá" (por isso não têm que se preocupar nem esforçar muito porque aparece sempre). Na Europa teve sempre de se trabalhar muito para ter aquilo que aqui nasce espontaneamente.
E amanhã é outro dia.

2 comentários:

  1. Porra... É muito complicado tentar fazer coisas para as pessoas e ver que elas (no geral) não querem ser ajudadas. Mais... quem tira peças de poços provavelmente nem seria corrida pela população se esta soubesse por acharem 'natural'.

    Mas foi apenas um dia mau, ou o sentimento regular é sempre esse?

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  2. Há excepções extraordinárias. Mas efémeras e inconsistentes. A norma é a que descrevi.

    Não se trata de uma questão de raça. Trata-se de uma questão cultural, milenar, algo que é composto por dezenas de factores que, numa escala menor, também fazem dos povos da Europa do Sul o alvo da chacota dos vizinhos nortenhos. O facto de esta gente, ao contrário dos europeus, nunca ter tido de se esforçar para conseguir obter a sua alimentação, a sua segurança e o seu conforto, porque a terra dá, conduziu a esta forma de estar. Durante séculos, foi a terra que deu, depois, passou a ser o branco. Mas o que foi sempre comum foi haver algo ou alguém que garantia.

    Quando essa garantia desaparece, ou reagem com apatia ou com violência.

    Veremos.

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