segunda-feira, 4 de maio de 2009

A Arte da Dissimulação.


Aqui há uns dias, fui entregar portas e janelas para a cabana recém construída da escola primária de Teacane, destinada aos serviços administrativos. Não te espantes com o pomposo. Nota bem a palavra "cabana". De cinco por três, feita de lama seca e bambú. Estás a ver as construções que temos por lá? Com betão armado e aquelas ferros ao alto? O princípio é o mesmo. Mas em vez de betão, lama. Em vez de ferros, bambú. O piso é irregular, a paisagem é mato até onde a vista alcança. Os telhados são de capim seco, parecem a cabeleira de um chinês.
O animador dessa escola (ou seja, o professor que colabora com a nossa organização nas intervenções que fazemos lá) pediu para partir de Nampula connosco. E lá fomos.
A viagem leva cerca de quarenta minutos. Os primeiros dez, pela estrada de Angoche, a que liga Nampula àquela cidade costeira, a cerca de três horas de distância, sempre por terra batida. Depois, ao pé das torres de telecomunicações, corta-se à direita, numa entradinha que mal se vê entre o capim de dois metros.
Depois, o costume. Caminho de cabras, com a largura de um carro, muitas vezes com fossos capazes de pôr-me a ver o mundo a quarenta e cinco graus... quando não é mais... nesses momentos, vou muito devagar e de olhos bem fechados... De vez em quando, um miúdo ou uma galinha a atravessar-se à frente. Sempre saídos a correr do meio do maldito capim que mais parece uma parede que não deixa ver nada. Às vezes, as galinhas correm mas em frente, não saindo do caminho. Expoentes do nível intelectual dominante. Outras vezes, mamãs com um peito de fora e um bebé às costas, meio atarantadas pela interrupção das lides diárias, a ver quem passa.
Nesses quarenta minutos fui conversando com o animador. É uma das pessoas que mais apreciei nesta terra. Julgo eu, com cerca de quarenta anos de idade, é uma pessoa ponderada e assertiva, que gosta mais de estar calado do que de falar demais. Nunca diz asneiras. Antes de dizê-las, pergunta. Por isso, nunca as diz.
Quando ainda íamos pela estrada de Angoche, a propósito já não sei de quê, queixei-me das estradas de Moçambique. Que em Portugal, antigamente, levava-se cinco horas para ir da capital para a segunda maior cidade do país. Mas que esse tempo foi reduzido para metade quando um governo de boa memória decidiu investir nas vias de comunicação. E expliquei-lhe as vantagens para a economia de um país existirem boas vias de comunicação, onde as deslocações sejam rápidas, seguras e, por isso, mais rentáveis. Ele mostrou espanto.
Animado, perguntou-me que mais eu pensava que poderiam ser boas apostas para o país.
Falei do sabido. Da educação. De como é importante ter as crianças na escola. E ele respondeu: e hospitais?!
E eu perguntei: de que vale ter hospitais se não tiver médicos nem enfermeiros formados? Calou-se.
Então, avancei. Ora pense lá bem. Se, daqui a uma geração, toda a gente com menos de trinta anos souber ler e escrever e uns outros milhares tiverem cursos superiores, o que vai acontecer? Ele disse algo como "será muito bom"... Disse-o como diria nunca provei lagosta, mas dizem que é muito bom. Eu respondi: será bom?... mas sabe para quê? Para a democracia.
Aí ele riu, meio envergonhado, meio assustado.
Sabe, meu amigo, antes de construir estradas, escolas ou hospitais, sabe do que precisa mesmo a sua terra?
Pelo canto do olho, senti-o a olhar para mim. Devia estar com os olhos esbugalhados, como uma criança que espera para saber que prenda lhe deixou o Pai Natal. Diga doutor, diga!...
Acabar com a corrupção.
Com esta maldita doença que mina tudo e todos em toda a parte. Com a corrupção que pode ser apenas o polícia de trânsito que inventa transgressões para pedir cem ou duzentos paus ao pobre diabo que lhe apareceu à frente, como pode ser o presidente da república que tem quotas em todas as grandes empresas do país, às quais são adjudicados, directa ou indirectamente, todos os grandes concursos públicos...
...enquanto a mulher dele diz na televisão às populações de uma determinada província assolada pela fome para que elas comam os macacos que neste momento são uma praga naquela zona. Estilo dois em um, matar dois coelhos de uma cajadada só. Já que deu a ideia, podia dar uma receita ou duas... presumo que coma imenso macaco, a senhora.
Ele continuava a rir, nervoso. Eu também ri e perguntei veja lá, não vai dizer agora que é secretário do Partido e que amanhã de manhã já estou na fronteira do Malawi com um chuto no rabo e umas costelas partidas!...
Que não, não se preocupe... Mas tem razão, doutor. Tem toda a razão.
Claro que tenho razão! Já imaginou os milhões de redes mosquiteiras (melhor prevenção da malária), as toneladas de sementes (sempre em falta), os medicamentos (praticamente inexistentes fora da cidade) que as pessoas comuns poderiam ter e os quadros negros novos (mais raros que água), o giz, lápis e canetas (inexistentes), os livros escolares (inexistentes), os cadernos (inexistentes), as salas novas (...) que a sua escola e tantas outras poderiam ter, se não se estivesse a construir um palácio presidencial megalómano de milhões de dólares a oitenta quilómetros daqui? Bastava isso, quanto mais o resto. Isso também é corrupção.
Ele calava-se e ia-se afundando no assento do carro. Está a falar bem, doutor, está a falar bem...
Mas à medida que o doutor ia falando e ia pensando, ia concluindo que Moçambique é tão corrupto como outros países ditos desenvolvidos.
A diferença está na arte da dissimulação. Arte que, neste país, pela manifesta desnecessidade que decorre do embrutecimento ignorante em que vive anestesiada toda a população, não teve de ser sublimada à perfeita capacidade de representação, mascarada de assertividade e falsa serenidade, da "vital importância da estabilidade", mascarada dessa política afectada e efeminada, liderada e seguida pelos mais fracos dos fracos, que vêem nessa "estabilidade" versão charco de água choca uma oportunidade de vingarem os tristes dias de adolescência em que eram insultados e batidos e gozados por todos os outros e outras... Esse é o mundo desenvolvido.
Aqui não é preciso vestir fatos bonitos, dizer palavras tão sedutoras quanto assignificadas, mostrar uma falsa indignação virginal por se ser acusado de um crime quando há suspeitas fundadas para isso. Porque ninguém sabe ler, ninguém lê, ninguém quer saber. Porque aqui passa-se fome e nunca se sabe o dia de amanhã. Aqui, bênção de Deus não é ter emprego, ter carro e ter casa. É ter o que comer pelo menos uma vez por dia.

1 comentário:

  1. Já tinha saudades, sr dr.

    Deve ser insuportável o cenário de corrupção. Por cá ainda vamos tendo alguma, felizmente e fase de melhorias rápidas, mas principalmente para questões pessoais. Ou seja, quando queres construir uma casa para ti, ou queres abrir uma empresa, ou qq coisa do estilo, lá tens de untar as mãos a uns autarcas ou fiscais menos honestos.

    Mas aí não. Aquilo que me assusta e me faz repensar sempre qual seria a minha reacção por aí, é que tens de corromper as autoridades para poderes ajudar as suas pp populações. Isso sim, deve ser desesperante.

    Quanto ao nível de corrupção, depende do nível de desenvolvimento cultural, acima de tudo. Nestes dias tenho olhado para os países a Norte de nós e pensado 'quem nos dera sermos assim'!

    O que é importante é que seja esse o nosso (aqui, aí ou a Norte) para melhorar sempre.

    Ontem li uma boa frase num livro de reflexão médica, que se aplica aqui também.
    Não nos peçam para sermos perfeitos, mas não nos impeçam de o querermos alcançar.

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