quinta-feira, 26 de março de 2009

O Outro Midas.

Ainda sobre os laços e sobre a tendência para estabelecer relações de afecto e procurar replicar os objectos de saudade em contextos de solidão e de adaptação a ambientes (aparentemente) hostis...

Por vezes, pode ser um objecto improvável. Não tem de ser necessariamente saudade do pai ou da mãe - ou de ambos; do parceiro ou da parceira - ou de ambos; do cão ou da cadela - ou de ambos; do amigo ou da amiga - ou de ambos; da playstation ou da nintendo - ou de ambos; do bacalhau com natas ou do arroz de cabidela - ou de nenhum.

Por vezes funciona ao contrário: por encontrarmos uma réplica (e só depois disso) de algo que está no nosso passado, apercebemo-nos da saudade sentida do objecto de saudade propriamente dito. Algo de que antes não sentíamos saudade de forma consciente.

Eu tinha saudades de alguém que em dada altura da minha vida desempenhou um papel bastante importante, mas não me dava conta disso. Até que encontrei o Missionário.

O Missionário é um homem de quarenta e alguns anos e está em Moçambique há onze. Homem endurecido pelo tempo e pela terra. Homem de obra e de palavra. Simples mas determinado, beirão, como só um beirão sabe ser. Passou vários anos em Murrupula, a setenta quilómetros de Nampula, bem no meio do mato africano, no fundo do fundo do fundo, onde aparecem aldeias ao virar de uma curva de picada tapada pelo capim, após quilómetros e quilómetros de condução difícil pelo meio do verde exuberante. Lá, cristianizou comunidades animistas, construiu um hospital, fez escolas, deu ordem, propósito e um conceito a centenas de vidas. Sempre com o ar mais bonacheirão, calmo e sorridente que é possível imaginar em alguém que um dia resolveu dar a vida pelos outros.

Nós, que também trabalhamos nesse fundo do fundo do fundo, sentimos a todo o momento a profunda influência que este homem deixou, a marca deixada a ferro quente, que se sente no amor daquela gente por ele, sussurrado pelas vozes e estampado nos olhares, quando nos perguntam pelo amigo que mudou as suas vidas para sempre.
Há alguns meses, a hierarquia enviou-o para um novo desafio: a Missão do Marrere, comunidade dos arredores de Nampula, a cerca de dezasseis quilómetros.
A Missão tem um hospital que está a ser recuperado e que recebe doentes de todo o lado e que já foi um dos melhores hospitais de toda a província; tem uma escola politécnica que ensina e forma centenas de jovens; dá trabalho e emprego a dezenas de pessoas, havendo de tudo: carpinteiros, serralheiros, agricultores, professores, contínuos, empregados domésticos, pedreiros, trolhas, médicos, enfermeiros, etc; tem "machambas" (hortas) que tiram a fome a uma população inteira, ocupando um território que literalmente se perde de vista. Um oásis no deserto, uma ilha de esperança no meio do nada.





Mas tudo isto é o Missionário, que parece ter um toque de Midas para trazer vida e dinâmica a tudo aquilo que toca. O que nesta terra tão pobre vale mais que ouro. Antes da sua chegada, a Missão do Marrere era uma memória, um rasto quase apagado dos tempos áureos, uma recordação abandonada ao tempo e à incúria.

Neste momento é um dos nossos principais parceiros de acção. O esquema é muito simples: ao encomendar à Missão produtos ou serviços de que precisamos para aplicar nas comunidades rurais onde intervimos, através da carpintaria, da serralharia ou de outros serviços, estamos a apoiar duas vezes com um só montante: a Missão, que é paga pelo serviço e a comunidade que beneficia directamente da iniciativa.

Por vezes, ao fim de semana, damos lá um salto para tomar café com ele. E por lá ficamos toda a tarde, debaixo de um alpendre muito simpático, a bebericar um digestivo e a falar de tudo e de nada. Apenas a apreciar o ar e as cores quentes de África e a companhia dos outros desterrados. A deixar o tempo passar lentamente, alternando debates mornos com períodos intermináveis de silêncio que em momento algum são desconfortáveis.

O Missionário lembra-me outro, que sem o ter sido efectivamente, é-o todos os dias da sua vida. E que me induzia um sentimento de ser bem acolhido e de estar protegido onde quer que me encontrasse com ele. E de quem sinto muitas saudades. Alguém que a vida levou para outro caminho, diferente do meu. Há pessoas assim, que conseguem criar-nos essa sensação de segurança, de apoio e de acolhimento genuíno, só pelo gesto e pelo comportamento, pelo olhar e pelo tom da voz. São homens de Deus. São homens com Deus. E estes homens são assim.

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