domingo, 7 de junho de 2009

O Fantasma do Garrett.


Há um café que se chama Garrett. Fica num primeiro andar, com varanda, muito perto da residência do Governador.

Sobem-se as escadinhas estreitas, depois de deixar o carro e bufar cada vez mais seco que não às crianças pedintes que infestam as ruas. Agora já as ameaço que as levarei para o orfanato. Algumas assustam-se. Outras não sabem o que isso é.

As escadas terminam e, no final, todo o espaço fica à esquerda. Depara-se uma sala pequena, com três ou quatro mesas e o balcão, à esquerda também. Lá ao fundo, uma sala de bilhar, grande. E à direita, a varanda, maior que o resto do café, estilo esplanada. Há duas telas para projecção, uma dentro, outra fora. Todas as mesas e paredes são dominadas pelas cores e logótipo da maior empresa de comunicações móveis de Moçambique. Verde e amarelo. Tudo gasto e velho. Tudo bem. Tudo normal.

O gerente, um senhor de quarenta e muitos anos, indiano nascido português e filho do fundador do café, esforça-se por agradar aos que fazem lembrar-se de tempos melhores. Ele que o diz. Hoje tentou ligar o projector, mas não conseguiu. Portugal viu-se de longe, mais longe do que daqui aí, mas viu-se.

Ainda o jogo não tinha começado, outro homem, mal pediu, sentou-se. Como sempre, fiquei a observar fixamente sem dizer palavra, como se não estivesse ali, mas a deixar claro que estava. Era indiano de feições, cinquenta anos, barba grisalha de muçulmano, sem bigode, túnica branca comprida e aquele chapéuzinho redondo típico na cabeça. Tinha óculos, mas usava-os sustentados na testa, bem acima das sobrancelhas. As lentes tinham, na parte de baixo, uma alteração que já não via há anos – a parte para ler e ver ao perto. Podia estar numa manifestação anti-América no Paquistão, que não seria de estranhar.

Apresentou-se mas depressa disse que era difícil soletrar. E, sem que alguém lhe pedisse o que quer que fosse, puxou de uma caneta e escreveu com energia o seu nome num guardanapo. Mesmo apesar de a caneta não deixar tinta, ele continuava a escrever, como se visse algo a aparecer no papel. Emprestei-lhe a minha. Chamava-se Momadikhatir ou algo do género. Então lá explicou que quando foi levado pelo pai saudita e mãe indiana ao registo português de Nampula, o senhor do registo, provavelmente farto de nomes incompreensíveis, registou como ouviu. Porque deveria ser Momade (versão moçambicana de Mohammed) Ikhatir. Aliás, como professor que é, deveria merecer melhor tratamento, dizia. Logo ele, que após a independência, decidiu manter a nacionalidade Portuguesa, merecia mais. Merecia mais.

Depois começou a falar de futebol e nós para trás e nós para a frente, o gajo só serve para a formação ou para treinador adjunto e não acredito que ganhemos o resto dos jogos até ao fim. E percebi que estava a falar de Portugal.

Então não está triste por o seu Moçambique ter perdido (tinha acabado de perder dois zero com a Tunísia)?

O meu? O meu joga a seguir.

Como se se tratasse de um fantasma a assombrar despreocupado a casa em que viveu toda a vida, mas sem se aperceber de que já não há nada nem ninguém para assombrar.

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